Vozes contra o desencanto

Como parte das comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna e do bicentenário da Independência do Brasil, o SESC São Carlos realizou no dia 11 de maio de 2022 o bate papo “vozes contra o desencanto”, com a participação do artista indígena Denilson Baniwa e a educadora, ativista cultural e primeira deputada trans eleita no Brasil, Erika Malunguinho.

Ao refletirem sobre o processo de modernização excludente e sobre as vozes e corpos que foram e ainda são silenciados,  os convidados  instigaram o público presente a pensar sobre a construção do país que queremos, sobre o reencantamento de nossas existências.

A seguir a transcrição da fala de abertura do professor Ruy Sardinha Lopes:

Saudação aos encantados

Abertura da mesa vozes contra o desencanto – SESC São Carlos, 12/05/2022
Ruy Sardinha Lopes

Então, ninguém atinava a aprender as catingas da encantada. Até ficaram surpresos quando apareci, certa vez. Me olharam e riram como se eu fosse assombração. Miúda roçava, mas sua paixão era
pescar. Era acordar de madrugada e seguir sozinha para a beira do rio. Levava os filhos, mas quando eles foram embora, Miúda pescou sem eles. Dormia na beira do rio sem medo de onça nem cobra. Eu era sua encantada, que domava seu corpo sem assombro. Protegia meu cavalo, Meu cavalo que dançava atirando a rede, no meio da casa do curador Zeca Chapéu Grande.
Meu cavalo não usava sapatos porque seus pés eram as minhas raízes e me firmavam na terra. Seus braços eram minhas nadadeiras e me moviam na água. Montei o meu cavalo por anos, que nem posso contar. Mas agora, sem corpo para me apossar, vago pela Terra (Santa Rita Pescadora).

Itamar Vieira Junior, Torto Arado, p.205

Brasil 2022.
722 anos da primeira invasão portuguesa. 722 anos de experimentos necropolíticos coloniais.

Se, como creram Colombo, Caminha e Vieira com as descobertas da América e do Brasil não se cumpriram as profecias de Isaias e Daniel – do encontro do Paraíso Terreal e a expectativa de renovação do Mundo;
Se em nome de interesses coloniais e da invenção de uma identidade nacional os mais diversos genocídios, epistemicídios e apagamentos foram e continuam sendo praticados;
Se às vésperas do bicentenário do acordo geopolítico entre as elites coloniais, mais 664 mil vidas foram exterminadas em decorrência de um determinado “projeto de nação”;
Se a um dia dos 134 anos da assinatura da Lei 3.353, que de áurea nada teve, parte de seu povo continua escravizado e as senzalas ocupando grande parte do território nacional;
Se há mais de 100 anos a flecha do tempo ainda vaga à procura do alvo para o qual estamos condenados: a modernidade.
É preciso amplificar o brado retumbante e dizer aos sons das maracas, rumpis e sintetizadores que tais experimentos não lograram o resultado esperado! Nosso canto, nosso encanto resistem. Velhos e novos gritos continuam ressoando em nossos corpos.

TUPI OR NOT TUPI NÃO É A QUESTÃO, a língua geral é uma ficção.
MENOS COMEMORAÇÃO E MAIS REMEMORAÇÃO!

Somos Tupi, Tikuna, Jê, Nheengatu, Yanomami…
Somos Fufulde Quicongo, Mandê, Haussá, Yorubá…
Somos Talian, Kinki, Hunsruckische, Pomerano….
Somos a Gira da Tabatinga, o fronterizo, a bagunça
Somos Diversos. “socialmente, economicamente. Filosoficamente”

Brasil 2022. É tempo de avançar!
Para fazer com que as águas desse GRANDE RIO chamado Brasil encontrem seu curso diante das encruzilhadas do presente pedimos licença para fazer nossa gira girar (Mojubá)

Licença mestre João Batista, malunginho de Catucá, que na força da menina Érica faz a gente lhe saudar.
Licença seu Mandu, pajé-onça baniwa, que na arte de Denilson faz a gente revigorar.
Licença seu José de Aguiar e dona Molambo que com suas gingas e catimbas fazem a gente dançar.
Licença cacique Sacambuasu que na poesia de Payayá seu recado vem nos dar.
Licença a todos os encantados: Xica Manicongo, Carolina e Clementina, Marielle,
Moa, Zezico, Pinduca e Jaider que na voz da dona Elza fazem nosso povo lutar!
Licença a todos os territórios de resistência – dos quilombos e mocambos às ocupações contemporâneas. Licença Aparelha Luzia, Casa do Nando, Quilombaque, Aldeia Maracanã, Estelita, Vitória, Ouvidor e Mauá.
Licença aos guerreiros juremeros – Denilson Baniwa e Érica Malunguinho, Sandra Benites e Matheus Aleluia, Alessandra Munduruku e Cidinha Silva, Txai Surui e Nei Lopes, Erica Hilton e Conceição Evaristo, Yucunâ Tuxá, Matheus Aleluia.
Licença a todos os povos – vivos e mortos – que com suas sabedorias fazem o fim do mundo esperar!